
Cheguei à estação de comboios decorridos três dias desde a última vez em que ali estivera. Trazia, como de costume, a mala de viagem e a mochila pelo ombro.
Faltavam cerca de dez minutos para o horário de partida e, quando entrei no comboio, apercebi-me de que o mesmo estava praticamente cheio. Por esse motivo, sentei-me num dos dois lugares ainda livres da carruagem destinados especialmente a grávidas e a pessoas com crianças de colo.
Absortos nos seus pensamentos estavam dois senhores encostados à janela.
Na minha diagonal, o idoso parecia ter um ar cansado e depreendi, pela respiração pesada e a muleta segura pela mão visivelmente trémula, que padecia certamente de diversos problemas de saúde. Alguns, muito provavelmente, fruto de uma idade que trazia consigo imensas histórias para contar.
A meu lado, uma luz que provinha do interior de uma aura septuagenária. Mostrava-se sorridente e extremamente observadora. Uma senhora outrora garota envolta pelo seu xaile verde-água. De pele extraordinariamente fina, bordada por uma doçura ligeiramente rosada, ia captando o mundo pela vidraça.
De quando em vez, olhava para mim como para todos os outros jovens que com ela se cruzavam. Avaliava-me com a nostalgia de uma mocidade deixada no passado, com a curiosidade do avançar de um tempo e a opinião, pensava eu, lá se formava por entre os meus pequenos afazeres.
Entretanto, lá fora, os minutos iam correndo e contra eles muitos outros Homens. A hora aproximava-se e a afluência de indivíduos correspondia-lhe proporcionalmente.
Tinha telefonado para casa, guardado o título num local estratégico e decidido, por fim, beber um pouco de água. Estava quente e o sol de inverno reluzia por entre pequenas brechas.
Foi nesse momento que olhei para a minha direita. Foi nesse momento que vi uma mãe a amamentar o seu filho.
Não pude deixar de me lembrar de todas as controvérsias que têm surgido sobre isto e de perguntar a mim mesma o porquê deste gesto poder incomodar alguém. No entanto, prossegui.
Eram de raça negra. Apaixonados um pelo outro.
Talvez aquela fosse a verdadeira definição do amor. O alimento, o toque, o sentir. Mas, eu não sabia…
Desviei o olhar para dar àquele momento a exclusividade que lhe é inerente. Contudo, não pude deixar de reparar na expressão dos restantes passageiros.
Enquanto assimilava o que poderia ser facilmente esquecido pela sua simplicidade, folheei “O Caso de Rembrandt” até chegar, por fim, à página número cinquenta e quatro desta narrativa “hipnótica” e “imparável”, segundo a revista People.
Retomei a leitura e envolvi-me no discurso grave travado entre Gabriel e Isherwood, mas, pouco tempo depois, uma pequena voz irrompeu para interpelar uma mulher que acabava de entrar.
Era mais nova do que parecia e tinha nos braços uma criancinha cujas palavras não descrevem com justiça.
– “Senhora?!” – Exclamou a mulher de cabelos brancos. – “Sente-se aqui com a menina.”- Prosseguiu.
Enquanto olhava para as possíveis mas inexistentes alternativas, a mulher negou amistosamente a cedência do lugar e eu percebi que não podia ser espetadora daquele momento.
Intervim e disse francamente, enquanto me levantava: – “Deixe-se estar sentada, eu levanto-me!”
Depois, voltei-me para a recém-mamã e disse-lhe: – “Sente-se com a menina. Afinal, este lugar é reservado para vocês.”
Entre sorrisos e uma cumplicidade que se continuou a desenvolver, as duas sentaram-se como só assim estava certo.
A senhora que se tinha sentado à minha frente, pouco tempo antes e sem que eu desse conta, estava incrivelmente bem maquilhada e os seus quarenta e cinco anos ocultavam, entre muitos outros episódios, seis abortos espontâneos e uma alegria desmedida pelo seu rebento que acumulava, precisamente naquele dia, onze aniversários.
A Mariana, como descobri que se chamava, era, ao contrário do que inicialmente todas nós pensámos, uma criança muito desejada. Tinha apenas dois meses e um irmão com vinte anos e, naquele momento, apenas fome.
Não teve de manifestar a sua necessidade durante muito tempo porque a mãe suprimiu-lhe o choro de imediato.
E, de repente, durante uma viagem de comboio que teria tudo para ser banal, eu percebi o quão simples a vida é.
Estava, literalmente, entre duas demonstrações de afeto, entre dois rebentos a despontar, entre os primeiros passos da vida de dois seres humanos ainda dependentes de cuidados.
Mas, estava também de frente para o homem que agora se levantava com muito custo. O homem doente, sem reação às provocações inocentes daquele novo ser. Um homem cansado, em contagem decrescente.
Emocionei-me. Sim! Porque estava ali o princípio e o fim, a vida e a morte.
E nenhum trajeto parecia interessar verdadeiramente.
Débil, o senhor saiu lentamente e eu ocupei o seu lugar.
Falava-se dos filhos, dos biológicos e dos que, não o sendo, pertencem ao coração. Lembravam-se os netos: os nomes, as idades, as traquinices…
E eu só me imaginava naquele comboio… Velha e doente, sem me deixar encantar pelo mundo. Sentada naquele mesmo lugar. Sozinha.
Só imaginava aqueles dois bebés de cabelinhos brancos e rugas profundas a apreciar o resto. Seria só isso: um resto roubado pela vivacidade com que hoje arregalavam os olhos.
A conversa fluía e todos em redor suplicavam por apenas um momento de atenção por parte daquela princesa vestida de cor-de-rosa.
Trazia um vestido com pintinhas brancas e um gorro de malha com dois pompons que evidenciavam o redondinho dos seus olhos bem despertos. Todo aquele querer dizer alguma coisa, todo aquele sorriso exclusivo dos deuses, todo aquele querer ser… ainda mais alguma coisa!
E eu já não ouvia nada de tanto que havia para pensar…
Ainda espelhava no vidro a presença de dois corpos semelhantes. Negros. Que não me eram nem podiam ser indiferentes.
Nenhuma graça, nenhum sorriso, nenhuma pergunta. Eram tão pequeninos e o seu tratamento já tão díspar!
Incomodava. Entristecia. Tanto como o volume do silêncio que ia aumentando a cada nova paragem ou apeadeiro.
E, por fim, todos regressavam à sua vida.
E eu ia ficando por ali, pequena demais para perguntas grandes demais.
– “A CP agradece a sua preferência! Esperamos contar consigo numa próxima oportunidade.”
Na verdade, eu também queria agradecer aquela oportunidade.
Dei um beijo à Mariana e um enorme sorriso à sua mãe. Tínhamos ficado apenas as três. E eu perdê-las-ia de vista naquele momento.
Mas, hoje, ainda as trago comigo.
A elas e a todos quantos naquele dia me fizeram parar para pensar.